quinta-feira, 23 de outubro de 2008






Shalom,
O Papo de hoje é com uma judia de coração que se propôs a ensinar o que foi o Holocausto.
Peço a atenção de todos:
Com a palavra, Ana Parreira!

PIT - Olá Ana, bem vinda ao Papo em Comunidade!
AP -
Olá, Patrícia. Fico muito contente por este espaço.

PIT - Qual a sua formação? Conte um pouco sobre você ...
AP -
Fiz o curso de Letras incompleto em Jaú, perto da cidade de Bariri, estado de SP, onde eu nasci. Depois fui para Campinas, onde fiz Publicidade e Propaganda na Puccamp, curso este que terminei na Casper Líbero em SP. Trabalhei com Mauro Salles em sua agência, e na Norton Publicidade. Ao me casar e ter o primeiro filho, retornei com meu marido a Campinas onde fiz Psicologia. Nesse tempo, trabalhei como secretária executiva bilíngüe em multinacionais e depois, como psicóloga, na CPFL, na Delegacia da Mulher e em outras. Também fui (e ainda sou) tradutora e revisora, tendo traduzido cerca de 20 títulos estrangeiros. Hoje, trabalho como psicóloga exclusivamente com dois temas (ou melhor, fatos), o assédio moral no trabalho e o ensino do Holocausto. É uma missão, mais do que um trabalho.


PIT - Quando e como começou o seu interesse em trabalhar o Holocausto?
AP -
Foi meio sem querer, algo que surgiu de meus estudos sobre assédio moral, que é uma forma de perseguição intencional, cruel e sistemática, que adoece as pessoas e que primeiro as descaracteriza, depois exclui e mata indiretamente (demissão, doenças etc.) – tentando não deixar vestígios. Nos textos, falava-se em genocídio. Fui conferir e daí comecei a estudar o Holocausto. Nunca mais parei de trabalhar este assunto, todos os dias. Com poucos recursos que tinha, eu consegui livros usados nacionais e estrangeiros, bem como filmes. Há 3 anos eu assisto a um filme por dia, leio e pesquiso tudo que posso.

PIT - Falando em assédio moral, qual a relação deste com o Holocausto?
AP -
Entendo que as práticas perversas de perseguição no assédio moral podem ser muito melhor compreendidas vendo o Holocausto. Nesse estudo, já encontrei 73 semelhanças (ou coincidências) entre as práticas de perseguição da época do nazismo e de hoje, na sociedade moderna. Mas o estudo do Holocausto em si é o que me atrai diariamente. Por que tanta perseguição aos judeus? Como no assédio moral, por que eu sou perseguido? Esta é a primeira pergunta que uma vítima de assédio faz a si mesma. Quem responde é Tim Fields, engenheiro inglês que foi muito perseguido no trabalho e fundou o site Bully Online. Ali está a pergunta "Why me?" (por que eu?). E a resposta de Tim: "Short answer. Only the best are bullied." (curto e grosso: só os bons são perseguidos). Isso me chamou muito à atenção. Assim também os judeus são perseguidos por uma série de razões que apontam para o mesmo centro: são muito bons e muito esforçados no que fazem. Primam pela excelência, gostam de estudar, se refazem e se reconstroem do nada (veja o exemplo de muitos sobreviventes). Outra coisa. Uma vítima de assédio às vezes é perseguida porque simplesmente está bem consigo mesma. Isso causa insegurança, por exemplo, a um superior que não tem certeza sobre si mesmo. Causa inveja. Sabemos que a inveja é o ódio de si mesmo, projetado no Outro. Um alvo de assédio, tal como os judeus, é o Outro. Os judeus são felizes da forma como são, não precisam mudar nada em suas tradições, de maneira geral. Esse é o ponto. Veja o filme "A Guerra do Fogo". Um bom funcionário, qualificado e esforçado, faz o seu próprio fogo. Os judeus também fazem o seu próprio fogo. Mas há os que preferem roubar o fogo, a tentar esforçar-se por atritar as pedras e conseguir luz própria. Então, tentam ter luz – fogo – roubando-a dos outros e ainda destruindo-os, para não lhes fazer sombra. Acho que é isso que acontece aos judeus há milênios. A perseguição ao ATO DE PENSAR POR SI MESMOS.

PIT - Você é autora de "Assédio Moral - Um Manual de Sobrevivência". Conte-nos um pouco deste livro...
AP -
Ah... Espero que o livro fale por si. É como um pão. Você não fala sobre o pão, você experimenta. Então, você pode dizer se é bom ou não. Tenho tido um excelente retorno desse trabalho. O livro foi feito para tentar ajudar a vítimas de assédio e aos profissionais em torno dela, pois eu passei pela experiência e não desejo a ninguém. Pode ser encontrado nas livrarias, mas se não encontrarem, quem quiser pode entra em contato comigo. A venda do livro também ajuda a continuar esse trabalho e o ensino do Holocausto. É uma forma de resistência, a mesma que você vê no levante do Gueto de Varsóvia. Se eu tiver de ser eliminada do trabalho (como fui, por assédio), prefiro morrer em pé e deixar meu recado. Foi o que eu fiz...

PIT - Para você qual a importância de se ensinar o Holocausto?
AP -
Bem, isso daria um livro. Mas por enquanto, vou citar apenas quatro motivos por que o Holocausto é importante ser conhecido.
Primeiro, o Holocausto é, para mim, o código genético do comportamento humano, da raça humana. Como diz Zygmunt Bauman (que felizmente veio pôr em palavras algo que eu não conseguia expressar), o homem contém em si as duas possibilidades, do bem e do mal. São as duas faces de uma mesma moeda. E sem revisitar o Holocausto, somos sujeitos a cometer os mesmos erros. Certamente, o Holocausto pode acontecer de novo, sim, ainda mais depois que o nazismo abriu um perigoso precedente, o maior genocídio da história da humanidade. Mas só podemos tentar evitar conhecendo os erros do passado. Não é à toa que os sobreviventes sempre estão a dizer "Para que nunca mais se repita".
Segundo, o Holocausto interessa a toda e qualquer profissão. O Holocausto é uma lição, dividida em milhares de mini-lições, para qualquer ser vivo. Amplia a visão de mundo de uma forma assustadora. Revela a força e as fragilidades do homem. Um dia, quero dar um curso sobre o Holocausto para PAIS e MÃES. Muitas mães, na época, deslumbradas com o nazismo, ou simplesmente por sobrevivência, estimularam os filhos – que seriam pessoas normais, em outras circunstâncias – e entrarem para o partido nazista e foi aí que eles se transformaram em cruéis torturadores e assassinos. Uma lástima. Eles poderiam ter sido mais felizes e também ter feito muito menos pessoas em sua volta infelizes.
Terceiro (e há muito mais motivos), o Holocausto é o único período que, de uma maneira trágica, é verdade, foi registrado passo-a-passo, inclusive pelos próprios perpetradores. Nenhum outro genocídio foi contado antes, nem pelos sobreviventes ou famílias das vítimas, nem pelos seus algozes, de maneira tão detalhada e farta em documentos como o Holocausto. Nenhuma experiência humana antes foi tão minuciosamente escrita e revelada. Se não aproveitarmos para aprender agora, significa que o homem ainda terá muito a sofrer no futuro, por ter memória curta em relação ao passado. (e olhe que o Holocausto ainda nem é passado – muitos que o experimentaram, de ambos os lados, ainda estão vivos).
E, quarto, o Holocausto ensina a destruir. Fazendo o caminho inverso, a partir desse conhecimento, podemos talvez aprender a construir, o que é muito mais difícil – porém é o melhor caminho a ser trilhado.

PIT - Você tem algum método próprio?
AP -
Eu me guio sempre pelas melhores fontes que posso encontrar, como os manuais do Teacher´s Guide, as diretrizes do Yad Vashem, do Museu do Holocausto, Simon Wiesenthal Center e outros. Dessa forma, ensinava o Holocausto sempre desde o início, começando pela ascensão do nazismo e chegando até o dia da libertação pelos Aliados. Mas, com o tempo, pensei em começar a mostrar o Holocausto (e a II Guerra Mundial) de trás para diante. Mostrar primeiro as cidades destruídas, a Europa inteira destruída, o resultado do genocídio alastrado como uma epidemia, as infinitas práticas sutis e perversas antes da "solução final", as mortes com que foram "premiados" tantos oficiais alemães que foram eliminados por capricho, ao menor sinal de insatisfação do "Führer", como era difícil a vida durante a guerra e durante o Holocausto, dentro ou fora dos campos de concentração. O medo constante, a fome, os bombardeios, as doenças, as deportações. Depois, sim, ir voltando no tempo. Não para justificar, mas para simplesmente ver como aconteceu. Além disso, eu faço uma pesquisa de rua para ver o que as pessoas sabem e/ou pensam sobre o Holocausto. É a partir das respostas eu vou reformulando a forma como introduzir essas questões em um curso. Eu não sou historiadora e o meu não é um curso de História, e sim, uma forma de pessoas comuns reavaliarem sua própria responsabilidade em cada mínimo ato do cotidiano. Muitas execuções de pessoas inocentes começaram, por exemplo, com uma simples fofoca ou denúncia de um vizinho.

PIT - Você teve ou tem resistência por parte de pessoas/instituições em tratar deste assunto?
AP -
Tive várias, inesperadas e as mais diversas. Mas tudo tem sido um aprendizado. Algumas são bem sutis, mas visíveis para quem estuda o Holocausto. Elas vão desde portas fechadas de algumas escolas até a falta de resposta para meus pedidos de apoio. Eu não posso continuar esse trabalho sozinha, pelo menos não como ele deveria ser feito. Elas também vão desde manifestações explícitas de irritação até polidas respostas de que "vão estudar o assunto" e tudo cai num vazio. Eu hoje faço parte da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Campinas, mesmo não sendo advogada, e ali fui para introduzir as causas do assédio moral e do Holocausto. Tive uma boa acolhida e pude fazer amigos na comissão, alguns já até fizeram um curso de Holocausto comigo. Outros já foram comigo a celebrações sobre o Holocausto, pela primeira vez, e isso os tornou mais sensíveis ao assunto. Eu não tenho vínculo acadêmico e, para alguns, isso é um impedimento. Eu tenho um bom conhecimento do Holocausto (jamais o suficiente), bem como vontade de implantar um curso com um pouco mais de energia. Mas falta-me, às vezes, um simples folder. Ou meios de divulgar. Ou um computador mais atualizado. Sou como aquele homem da periferia que resolveu montar um cinema na garagem de sua casa, com material feito de sucata, e conseguiu. Penso que também vou conseguir e por isso continuo. Enquanto isso, os neo-nazistas são patrocinados, apoiados e incentivados. Então, o tempo perdido de um lado, e o tempo cada vez mais bem aproveitado pelos neo-nazistas, isso já é capaz mostrar a situação qual é, ou seja: a intolerância ainda tem mais espaço do que a boa vontade de alguns para combatê-la. Mas isso faz parte.

PIT - O que você acha daqueles que negam a existência do Holocausto?
AP -
Acho uma perda de tempo – deles e de nós que sabemos ser isso verdade. Mas como, felizmente, tem muita gente boa perdendo seu precioso tempo, obrigatoriamente, para refutar os "negacionistas" ou "revisionistas", concentro-me no ensino do Holocausto em si. Em todo caso, tenho certa pena dos que preferem fazer o papel de tolos e sair por aí fazendo discursos sobre a não existência do Holocausto, pois imagino que estes, no período nazista, também não seriam poupados. A qualquer escorregadela que dessem, também seriam executados por "traição". Enfim, ser tolo também é uma escolha do ser humano e alguns querem ir por esse caminho.

PIT - Qual a sua relação com o judaísmo?
AP -
Minha relação com o judaísmo, hoje, é de encantamento, de tímida e prazerosa aproximação. Lá no fundo, eu sinto que é um encantamento definitivo, para o resto da vida. Fui criada na religião católica, quando era menina. Fui procurar outras religiões e fiquei muito tempo no budismo, que respeito bastante, inclusive conheci de perto o Dalai Lama, um homem santo. Mas também ali não era exatamente o meu lugar. Eu tenho uma imagem, como se fosse um sobrevivente de um campo, e conseguisse retornar à sua aldeia depois de muitos anos, e saísse a caminhar pelas ruas tentando reconhecer o lugar em que viveu no passado. Então via uma casa, e outra, e pensava: Será que esta é a minha casa? Mas uma atrás da outra, cada religião que eu procurava não era o meu lar, "my home". Nesse sentido, eu já estava me habituando a ser uma "homeless" - e isso me inquietava um pouco. Até que penso ter encontrado a casa verdadeira (o judaísmo), porém ela está ocupada e seus habitantes não me reconhecem o que, dadas as circunstâncias, acho natural. Mas só de localizar a casa já fico muito feliz. Se eu tivesse conhecido o judaísmo quando pequena teria sido muito bom. Mas fui conhecer só agora, então estou aprendendo. Faço um curso sobre o Shabbat, e guardo – como posso – o Shabbat e outros feriados judaicos. Mas ainda não tenho acesso a nenhuma sinagoga. Muitos amigos judeus de São Paulo, Rio e até João Pessoa me dão dicas. Eles me mandam textos, ensinam sobre os costumes, práticas e expressões. Assisto muitos filmes. Leio muito. Sei recitar o Kaddish e cantar Hatikvah. O primeiro dia em que eu ouvi o hino de Israel foi uma celebração. E um dia muito feliz foi o dia em que consegui adquirir uma mezuzah e a coloquei em minha porta. Um amigo me deu a Siddur, e um dia eu ainda quero ter uma Torah para ler em casa, mesmo se não puder freqüentar uma sinagoga por enquanto (estou em Campinas). Mas isso tudo é muito recente. Eu ainda tenho muito que aprender.

PIT - Você chegou a pesquisar sobre o seu sobrenome?
AP -
Bom, meu tio avô, Alceu Martins Parreira, que era presidente do extinto IBC em Santos, costumava viajar e pesquisar sobre nossa família Parreira. Ele me enviou várias cartas, antes de falecer, contando que minha família materna "começou" em 1540, em Angra do Heroísmo, nos Açores, com um sujeito chamado Antão Martins Parreira. Na época, eu não liguei esse fato com nada. Mas hoje, sabendo que os judeus em Portugal foram forçados a se converterem, eu fico imaginando que esta seja uma pista do que pode nos ter acontecido. Pois nenhuma família "começa" do nada. Há outras pistas também sobre meus antepassados, de sobrenome europeu, que teriam vindo para o Brasil entrando por Minas ou Goiás, e lá tiveram ou trabalharam em uma fazenda. Ainda estou pesquisando, embora sejam pistas muito vagas. Mas no fundo, eu fico feliz por imaginar que sou judia – e me sinto judia desde essas descobertas.

PIT - O que você gostaria ainda de realizar?
AP -
Tudo gira em torno do estudo e da transmissão do Holocausto hoje. Eu gostaria de poder montar um curso de um ano e outros cursos menores, sem tanta dificuldade. Gostaria de poder visitar, sem pressa, alguns locais como Auschwitz, Lods, os museus, o Yad Vashem, o Simon Wiesenthal Center em Viena, ou na Argentina. Tenho já uma pequena rede de pessoas que, com o meu trabalho, acabaram por se interessar pelo Holocausto e algumas, possivelmente, até iriam comigo e eu gostaria de guiá-las numa viagem depois. Desde adultos até jovens. Uma de minhas primeiras alunas de um curso de Holocausto que eu dei tem 17 anos e quer ser historiadora. Ela me acompanha em tudo, até hoje. Eu lhe dou livros para ler e ela gosta muito. Ela trouxe uma colega, também com 17 anos, que trouxe o pai, um professor de matemática. Eu os levei na Jornada do Holocausto, que foi feita pelo LEER-USP em São Paulo. Acho que este é um dever e um prazer. Também gostaria de traduzir livros e textos sobre Holocausto para o português. De ter uma coluna em um site sobre Holocausto e de fazer, quem sabe, meu próprio site. Mas, principalmente, eu sonho em montar um curso sobre o Holocausto, como falei, para pais, mães e professores – bem como cursos dentro de algumas empresas. Acontecerá, quando eu tiver o devido apoio para isso. Por enquanto, dou alguns cursos pequenos (dois dias) em um conjunto no meu prédio, para poucas pessoas.

PIT - Ana, obrigada por sua entrevista e deixe aqui o seu recado.
AP - Eu é que agradeço pela oportunidade de mostrar o meu trabalho à comunidade judaica e a outros. O recado que eu deixo se resume em uma frase já conhecida, "Tikum Olam": torne o mundo melhor do que estava quando você o encontrou.
Quem quiser ser um apoiador deste trabalho pode entrar em contato: anaparreira@uol.com.br – telefones: 19 – 3235.1815 ou 9185.0015
Shalom!



Ana Parreira e o artista plástico alemão Horst Hoheisel, que faz monumentos sobre o Holocausto





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