Shalom!
Um cantor gospel que encontrou sua raiz judaica.
No Papo de hoje, Leonardo Gonçalves e a celebração desta descoberta!
PIT - Olá Leonardo, bem vindo ao Papo em Comunidade!
LG - Muito obrigado pelo convite… é um prazer conversar com você!
PIT - Como começou sua vida musical?
LG - Minha vida musical começou bem cedo… No ano em que eu nasci meu pai (Francisco Gonçalves) era barítono do quarteto Arautos do Rei, que é o grupo musical oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), e minha família por parte de mãe também é uma família de músicos; meu tio (maestro Williams Costa jr.) sempre me ajuda nas produções dos meus trabalhos especialmente na parte de gravação, arregimentação, regência de também arranjos de cordas e orquestra. Minha musicalização se deu na Alemanha, em 1985, no monastério Lüne e aos 7 anos de idade comecei a estudar Viola da Gamba com Rainhardt Tüting em Lüneburg, ainda na Alemanha. Mas foi somente aos 15 anos, já de volta ao Brasil, que considero ter descoberto o que mais me dá prazer musicalmente, que é cantar. E comecei cantando no Coral Jovem do IASP em Hortolândia (onde cursei meu ensino médio) e no grupo Tom de Vida.
PIT - Depois de dois CDs autorais, como foi fazer Avinu Malkenu, um projeto em que você interpreta canções que fazem parte do universo judaico?
LG - Foi e tem sido simplesmente incrível! O universo judaico é muito rico tanto na forma quanto de conteúdo… Não demorei muito para perceber que para eu conseguir fazer algo relevante eu tinha que imergir, mesmo, neste universo. Talvez por isto, também, que demorei tanto para realizar este projeto. Foram 2 anos só pesquisando repertório e mais 6 anos em estúdio gravando, tudo com muita calma, um passo de cada vez… É simplesmente incrível cantar canções tão significativas, tão profundas e que acompanham tantas pessoas em momentos tão solenes há tanto tempo. A maioria das músicas deste cd são litúrgicas e são orações maravilhosas, textos bíblicos… É algo que está completamente fora do nosso cotidiano… É maravilhoso poder cantar coisas que são tão superiores ao "eu" e que falam do "nós", do coletivo, da "nossa" experiência com D-s. Hoje em dia muitas pessoas se perdem em uma experiência religiosa em demasiada pessoal e até egocêntrica… Neste projeto eu tive a oportunidade de me inserir num contexto em que o coletivo de milênios de tradição é a raiz. E só isto está sendo um privilégio e tanto.
PIT - Como foi o processo de composição, gravação e escolha de repertório deste disco, já que ele tem 4 músicas inéditas, como foi compor em Hebraico?
LG - Como eu disse a gente –e quando digo "a gente" quero dizer Edson Nunes jr. (que foi quem produziu este cd comigo) e eu– demorou bastante para escolher o repertório. E algumas músicas entraram depois que a gente já tinha gravado muita coisa deste cd. São 8 músicas tradicionais e 4 inéditas. E a tentativa de colocar músicas inéditas foi uma das maneiras que a gente encontrou de criarmos um diálogo com o judaísmo. Este diálogo, na verdade, é o objetivo de tudo isto. Hoje em dia o que mais se tem são pessoas de diferentes opiniões discursando umas com as outras. Para fazer um discurso você não precisa conhecer com quem você está falando. Basta conhecer sua própria opinião. Pra discursar você não precisa nem escutar o que o outro diz. E infelizmente é o que mais tem acontecido. Nossa tentativa foi primeiro compreender um pouco mais do que é o judaísmo e o significado de cada canção dentro de seu contexto histórico, religioso, litúrgico e espiritual… e é impossível fazer isto sem se apaixonar pela riqueza contida em toda esta tradição! Foi somente a partir disso que a gente escolheu canções cuja relevância a gente de fato tinha condições de compreender e que falavam também da nossa realidade. E na medida em que fomos compreendendo o contexto de certas coisas, nasceu o desejo de contribuir, de fazer canções de alguns textos que são muito importantes para nós. Foi então que surgiram as canções "nachamu, nachamu", "mimmayne hayeshua", "Avinu shebashamayim" e "savlanutam shel hakedoshim".
PIT - Os arranjos do disco são primorosos. Qual foi o critério para a sonoridade das canções?
LG - Olha… Na verdade o que a gente mais queria, dentro ainda deste desejo de dialogar e de contribuir, era criar uma sonoridade em relação a tudo que tínhamos escutado, mas ainda assim diferente, nossa. A gente queria algo solene e sóbrio, mas que, ao mesmo tempo, fosse contemporâneo também; e que ainda tivesse pelo menos uma pitadinha de brasilidade. Uma das coisas fantásticas do judaísmo, conseqüência da Diáspora, é o fato da cultura judaica se "colorir" da cultura local em todos os lugares. E isto vai muito além de você ter judeus ashkenazy, mizrahy ou sefardi! É claro que, apenas para citar um exemplo, a música argentina vai influenciar a música judaica de lá e vice-versa! Na verdade, neste sentido, os Judeus do mundo todo sabem melhor do que qualquer outro povo como travar este diálogo cultural porque o fazem naturalmente com a cultura local de onde moram. Então, na hora de fazer um arranjo e/ou escolher uma instrumentação, passado aquele período intenso de pesquisa pelo que passamos, a gente simplesmente buscou fazer o que, aos nossos ouvidos, soava mais bonito. E o que mais tinha que ver com a letra da música. Simples assim! Beleza e retórica.
PIT - Em que momento você sentiu que deveria fazer este projeto?
LG - O meu amigo Edson Nunes jr. já estava tentando me convencer há algum tempo pra eu aceitar este desafio de gravar um cd em hebraico. Mas particularmente um momento decisivo para mim foi quando levei o meu avô pela primeira vez para a Beth B'nei Tsion, o Templo Judaico-Adventista (que é uma IASD que tem como objetivo incentivar os membros que possuem ascendência judaica a manterem suas raízes judaicas). Durante a liturgia ele foi ficando cada vez mais emocionado e a gente simplesmente não entendia o porquê. Depois ele explicou que o seu avô (meu tataravô) faleceu quando meu avô tinha apenas 8 anos de idade e ele havia quase nenhuma recordação de seu avô. Mas durante a liturgia e ouvindo as canções ele foi lembrando de sua primeira infância e das coisas que seu avô lhe havia ensinado, o que nos levou à conclusão que, obviamente, o seu avô havia sido Judeu. Quando eu descobri esta nossa herança judaica eu não resisti mais. Este cd representa a minha busca pelas minhas raízes judaicas e, sendo o músico que sou, é claro que esta busca tinha de ser musical.
PIT - Existe alguma diferença em cantar e interpretar em Hebraico? Você teve uma preparação especial? Teve que aprender a língua ou já sabia?
LG - Infelizmente cresci sem sequer saber que possuía uma ascendência judaica. E é claro que cantar em cada língua é muito diferente. Ainda estou muito longe de ser fluente em hebraico, estou ainda engatinhando, mas tivemos uma preocupação muito grande em tornar a minha interpretação não apenas inteligível (pronúncia), mas verdadeira. Eu gravei praticamente todas as músicas de cor! Esta foi uma das outras razões pelas quais eu demorei tanto para finalizar este projeto. Fui muito ajudado pelo Edson Nunes jr., que está terminando o mestrado dele em estudos judaicos na USP, e o "mentor" dele, o Dr. Reinaldo Siqueira, também deu uma boa supervisionada… O fato de eu já falar outros idiomas também ajudou bastante… Especialmente na pronúncia dos sons guturais meu alemão foi de grande valia.
PIT - Como você descobriu sua descendência judaica? Existe um outro Leonardo Gonçalves depois que descobriu sua descendência judaica? Como é seu contato com o judaísmo?
LG - A mentalidade e a cultura judaica mudaram minha maneira de enxergar o mundo. Pode soar como um exagero, mas melhor do que tentar explicar isto é dar um ou dois exemplos: na nossa cultura ocidental a definição de um "milagre" é a transposição das leis naturais da física. Dentro do judaísmo, milagre maior do que, por exemplo, D-s ter feito o sol parar para que Josué pudesse vencer uma batalha, é o fato dEle fazer o sol nascer a cada manhã. O judaísmo busca ampliar os conceitos. Um exemplo melhor ainda é o primeiro capítulo do livro "O Shabbat" de Abraham Joshua Heschel. D-s não está interessado no que você tem. Ele está preocupado em quem você é. E o que você é, é determinado por aquilo com que você passa o seu tempo. Por isso Ele escolheu não ser adorado num lugar específico, ao qual talvez poucos tenham acesso, mas Ele quis ser adorado no tempo e, por isso, escolheu 1 dia, o sétimo, para o santificar. Em se tratar de D-s, não tem como você pensar "grande demais"… Ampliar a compreensão das coisas é um dos aspectos dos quais eu mais gosto no judaísmo.
PIT - Você esteve em Israel. Como foi estar na Terra Santa e que sentimento despertou em você?
LG - É difícil falar de Israel… Já tive o privilégio de viajar muito e conhecer muitos lugares. Nenhum lugar é como Israel. Muito se fala no Brasil que a palavra "saudade" é uma palavra que só existe em Português… Acho que só entendi o que, de fato, é "saudade" em Israel. E não pense que estou me referindo apenas à saudade que eu tenho de Israel quando estou aqui, no Brasil. É aquela saudade "não-sei-do-quê" que você sente de Israel quando está lá. É muito difícil de descrever e de explicar isso, mas tenho certeza que muitos vão entender exatamente a que estou me referindo. Acho que só entendi o sentimento da canção "Yerushalayim shel zahav" lá… e todos que compreendem esta canção com o coração sabem do que estou falando.
PIT - O que você espera de Avinu Malkeinu?
LG - Primeiramente uma pequena explicação: a gente optou por escrever o "Malkenu" sem o "i" por compreender que a transliteração deveria ser, na medida do possível, baseada mais na escrita do que na pronúncia. É verdade que a maioria das pessoas pronuncia "Malkeino" com "i", mas na escrita desta palavra não há nada que justifique este "i". Por isto optamos por escrever "Avinu Malkenu". Bom, espero coisas pequenas e simples, mas ao mesmo tempo profundas: Que desperte a curiosidade nos cristãos que ouvirem estas canções a buscar conhecer mais a respeito do judaísmo. E que os judeus que escutarem estas canções possam receber de bom grado esta singela homenagem que lhes faço, com este cd.
PIT - Leonardo, obrigada por sua entrevista e deixe aqui o seu recado!
LG - Eu não acredito que nossas diferenças devam afastar-nos uns dos outros. Mas eu também não acredito que a gente deva esquecer ou deixar de lado o que nos distingue. Pode soar algo em demasiado utópico e idealista, mas é só através da valorização de nossas diferenças que a gente pode encontrar o caminho para a verdadeira comunicação e diálogo. Você saber quem você é, e saber quem é o outro, e que este outro é diferente de você é algo que a gente precisa aprender a celebrar! E enquanto isto ainda for muito difícil em palavras ou nas ideias, talvez as artes, a música possa ser um veículo para a gente começar a aprender e internalizar este conceito. Há muito mais que nos une do que nos separa. E o que nos separa é tão belo quanto o que nos une.
Ouça aqui a canção título "Avinu Malkenu"